- Ele usava óculos.
- Óculos escuros.
- Isso. Óculos escuros.
- E um boné.
- Boné?
- É, não se lembra?
- De boné, não estou lembrado não.
- Um boné verde, ou era preto?
- Não, não era boné, era um chapéu. Chapéu de feltro.
- Isso mesmo. Chapéu de feltro.
- Pobre homem.
- Pobre?
- Jeito de falar, né? Do jeito que morreu.
- Pois é. Ninguém merece um destino destes.
- Ninguém.
- E digo mais, ninguém merece um destino daqueles.
- Ninguém. Pobre homem.
- O destino foi trágico, concordo. Mas de pobre ele não tinha nada.
- Aí é que você se engana.
- Não me engano não, meu amigo. Ele podia ser tudo. Mentiroso, canalha, salafrário, ladrão dos bens públicos, mas pobre, era coisa que não era.
- Sei que não era pobre, mas tinha uma coisa muito pobre.
- O que?
- A alma. Tinha a alma pobre.
- Se eu tivesse a grana e a influência que ele tinha, não me incomodaria de ter a alma pobre. No país das almas não tem banco.
- Mas tem ética.
- O que? Ética. Do que você está falando?
- De paz de espírito, de valores, de honestidade.
- De que planeta você é, heim? Por que com certeza não é da terra. Você já viu alguém se preocupar com ética neste país.
- Já. E muita gente.
- Um bando de pobres, e otários.
- Um bando de gente de bem!
- Com isso eu concordo. E essa gente faz um bem enorme, deixando mais para os outros.
- Mas isso vai mudar.
- Muda nada. Desde o descobrimento que este país é o mesmo.
- Mas o povo está acordando.
- Tá nada. O povo dorme em berço esplendido, junto com as leis e a sua ética.
- Por exemplo. Eu procuro agir com ética.
- Você é um louco que devia estar no manicômio. Honestidade é doença meu caro.
- Não, é dignidade.
- Palavras, palavras, palavras. Nada mais, na hora do vamos ver é que a gente sabe com quem está lidando. Quanta gente que pousa de santo e por baixo dos panos é o maior vigarista.
- Não tiro a sua razão. Você tem motivos e exemplos para pensar assim. Mas eu me guio por mim mesmo. Preocupo-me com coisas mais importantes que me dar bem.
- E o que é mais importante que se dar bem, ter dinheiro, poder?
- Viver em paz, ser feliz, conhecer as coisas singelas da vida. Construir valores, se preocupar com os outros, com o planeta, com a natureza...
- Eu admiro você. Mas não conseguiria viver assim nunca.
- Veja o seu amigo...
- Não era meu amigo.
- Mas pensava como você. Tinha os mesmos ideais.
- É... de uma certa forma.
- Então. O que foi que ele ganhou com tudo o que fez?
- O que? O cara era poderoso. Vivia cercado de mulheres, de gente bonita, freqüentava festas e altas rodas.
- Mas também vivia preocupado. Cercado de seguranças. Quase perdendo os cabelos por causa das CPI´s, das investigações da polícia federal...
- Pegaram ele? Me responde? Pegaram ele?
- Não, mas...
- Então. O cara se deu bem. Se livrou de tudo.
- E morreu drasticamente.
- É...
- E de que adiantou sua fortuna, seu prestígio? De nada. E pior, morreu infeliz.
- Como é que você sabe?
- Uma pessoa que faz o que ele fez, não pode ser feliz. E mais, ele já tinha sofrido um infarto...
- Está na minha hora. Tenho que ir.
- Vai meu amigo. Mas lembre-se. Riqueza sim, mas não a qualquer preço. Ética, é o produto que faz falta em nosso país.
- Você não muda, heim? Até.
- Até.
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